Dívida angolana à Rússia: novo relatório e nova queixa-crime por corrupção
Uma nova investigação reaviva as denúncias de ilegalidades e junta novos elementos. Os autores esperam com o documento contribuir para a reabertura do processo, agora pelo procurador-geral da Suíça
Angola
Ana Dias Cordeiro
O caso não é novo mas alguns elementos são. Por isso, depois de arquivada em Abril de 2005 na Suíça pelo procurador-geral de Genebra Daniel Zappelli, a investigação ressurge agora na forma de um relatório e de uma queixa-crime apresentada este mês por cidadãos angolanos e activistas anticorrupção junto da Procuradoria-Geral Federal suíça, na cidade de Berna. Em paralelo, nos tribunais de Luanda, foi apresentada uma queixa-crime na semana passada. Um dos cidadãos angolanos desta iniciativa é Adriano Parreira, o mesmo que apresentou queixa contra altas figuras do Estado angolano por fraude fiscal e branqueamento de capitais junto da Procuradoria-Geral da República em Portugal.
O relatório, publicado este mês pela Corruption Watch UK e Associação Mãos Livres de Angola, intitulado Deception in High Places: the corrupt Angola-Russia Debt Deal (Fraude em altas posições: o contrato corrupto da dívida de Angola à Rússia), acrescenta dados ao já conhecido esquema montado em 1996 para o pagamento da dívida de Angola à Rússia, que lesou os dois Estados em centenas de milhões de dólares e terá beneficiado intermediários, como os empresários, e na altura também negociantes de armas, Pierre Falcone e Arcadi Gaydamak, e altas figuras do Estado angolano, incluindo o Presidente Eduardo dos Santos. Andrew Feinstein, fundador da Corruption Watch e um dos autores do relatório, considera, em entrevista, que estes novos elementos podem contribuir para relançar o inquérito judicial na Suíça.
A ambas as queixas entregues (na Suíça e em Angola) foi anexo este relatório que denuncia as irregularidades, que Feinstein considera, pela sua "dimensão" e "natureza", constituírem "um dos piores" negócios ilícitos que alguma vez investigou em muitos anos.
O objectivo dos autores é duplo: ir mais longe na exposição deste caso e expor a corrupção de uma forma que resulte em "mudanças de política" efectivas que levem os governos nacionais e a União Europeia (UE) a legislar para que deixe de ser possível ocultar a identidade dos accionistas de empresas.
"Este [caso que envolve Angola e a Rússia] é um exemplo muito bom de como pessoas em cargos de poder, seja na política ou na área dos negócios, ajudadas pelos bancos e pelo recurso a jurisdições financeiras off-shore [paraísos fiscais]", facilmente desviam fundos públicos em benefício próprio.
Investigações em Portugal
Sobre Portugal e as investigações iniciadas na Procuradoria-Geral da República a partir de queixas por fraude e branqueamento de capitais contra altos responsáveis angolanos próximos do Presidente José Eduardo dos Santos, e "apesar das pressões políticas", Feinstein recomenda às autoridades portuguesas que não esqueçam "o preço que os países pagam quando se tornam centros de lavagem de dinheiro".
Tanto a Rússia como Angola pagaram esse elevado preço com o caso descrito neste relatório. O documento de 170 páginas reconstitui, com detalhe e dezenas de documentos comprovativos, a operação montada a partir de 1996 que permitiu desvios de mais de 700 milhões de dólares. A dívida era de 5000 milhões de dólares (cerca de 3900 milhões de euros ao câmbio actual) mas Angola e a Rússia chegaram a acordo para Luanda pagar 1500 milhões de dólares. A realidade acabou por ser muito diferente, depois de Arcadi Gaydamak e Pierre Falcone constituírem uma empresa fictícia apenas para o negócio: a Abalone Investments.
Angola pagou à Abalone a totalidade dos 1500 milhões de dólares para liquidar a dívida à Rússia, mas a Abalone conseguiu comprar a dívida à Rússia por apenas metade do valor acordado, 750 milhões de dólares. Numa síntese explicativa, os autores do relatório escrevem: "Do dinheiro pago à Abalone, 311 milhões de dólares foram distribuídos a Gaidamak, Falcone e Vitali Malkin (oligarca russo, associado de Falcone e Gaidamak), 36 milhões de dólares foram entregues ao Presidente de Angola, Eduardo dos Santos, e cerca de 38 milhões de dólares foram distribuídos por quatro outros altos funcionários públicos angolanos. Não existe qualquer registo relativo a 500 milhões de dólares." O PÚBLI- CO tentou várias vezes contactar a Presidência angolana, por telefone, sem sucesso.
Os pagamentos à Abalone provinham dos fundos da empresa estatal de petróleo angolana Sonangol (dinheiros públicos do Estado) e eram garantidos pela Glencore, uma empresa sedeada na Suíça e anteriormente envolvida na compra de petróleo angolano.
"Este é apenas um exemplo, mas muitas transacções deste tipo acontecem", diz ao PÚBLICO Ken Hurwitz, responsável da Open Society Justice Initiative e também envolvido na investigação deste caso. É ele quem explica as razões de ser deste relatório agora: a investigação foi mal conduzida na altura e o caso foi arquivado em 2005. E a nova informação, agora exposta, "torna claro" que existe matéria "não apenas contra os responsáveis angolanos que beneficiaram na altura ou contra intermediários" como Falcone, Gaidamak ou Malvin, mas também "contra responsáveis bancários que contribuíram para o negócio".
Matéria desconhecida
Entre os novos elementos, está a constatação de que a Rússia terá sido lesada num valor superior ao que se pensava quando o caso foi investigado na Suíça. Foi descoberta uma "segunda fase do esquema", desconhecida até agora e que comprometeria apenas Arcadi Gaidamak. Esta segunda parte do esquema é exposta em pormenor no relatório que conclui a favor da necessidade de acções legais contra responsáveis, também "banqueiros, advogados, contabilistas e outros intermediários e mediadores internacionais", em países europeus, que contribuíram para uma fraude que lesou, em milhões de dólares, as populações de Angola e da Rússia.