Wednesday, February 10, 2016

CORRUPÇÃO MILITAR

Um imenso muro de silêncio
Publicado a 12/10 de 2003, Notícias Magazine
Assinado por José António Vilela

Alegadas ilegalidades na aquisição de viaturas tácticas, autotanques. empilhadores e helicópteros. E. já agora, coletes à prova de bala. obuses ligeiros, lança-granadas-foguete, morteiros de 60 e 81 mm e mísseis antiaéreos. Dezenas de ambulâncias que se adquirem e nem se sabe a quem foram entregues. Necessidades de material que aparecem após compra, radares ultrapassados que duplicam de preço, concursos públicos de Panhards que magicamente evoluem para negociações nunca feitas e daí para o ajuste directo, duvidosas extensões de concursos públicos que se prolongam por anos e levam ao dobro das compras. E Uzis novas vendidas ao quilo como sucata a 12$10... Tudo processos em investigação na Policia Judiciária Militar, que começam normalmente contra incertos, cirandam pela infidelidade e aceitação de interesse pessoal até terminarem na identificação de alguns (poucos) alegados responsáveis, onde se incluem generais. Esta viagem ao mundo dos negócios das Forças Armadas Portuguesas percorre caminhos de muitas pressões sobre investigadores e investigações, divulga histórias de processos só abertos vários anos após os acontecimentos e que teimam em não chegar ao fim ou conhecer divulgação pública. E tenta quebrar o "muro de silêncio" denunciado nos próprios relatórios da Inspecção-Geral de Defesa Nacional. Contactado pela NM, o gabinete do chefe do Estado-Maior do Exército considerou não serem oportunos quaisquer comentários a casos que se encontram sob investigação

O DESAPARECIMENTO DAS UZIS

E se lhe disserem que uma empresa portuguesa comprou cerca de sete mi1 toneladas de sucata militar por cerca de 423 mil euros? E que as Forças Armadas se enganaram para bem menos nas toneladas a alienar? E que o concurso público não foi transparente? E que alguém deu ordem para dar outra "sucata" ao empresário? Algo que incluiu 1800 pistolas-metralbadoras Uzi. 
A 12$1o o quilo ...
A NM teve acesso a documentação que mostra como a Policia Judiciária Militar (PJM) tem estado a investigar um processo que é tudo menos daro e que tem como arguidos "incertos e um alegado crime de aceitação de interesse pessoal". O caso começa com a publicação na revista Visão, em Agosto de 1995, de eventuais irregularidades na alienação de material obsoleto localizado num depósito de guerra, em Beirolas, que tinha de ser transferido para Benavente porque era necessário libertar os terrenos para as obras de construção da Expo'98. No ano anterior, em 1994, a Direcção de Serviço de Material (DSM) do Exército tinha realizado um concurso público para alienar cerca de sete mil toneladas de sucata militar, tendo ocorrido diversos problemas que levaram à anulação do concurso.
Os documentos revelam que a confusão ficou instalada no concurso público aberto pelo Exército depois de terem surgido denúncias de conluio entre empresas que procederam a ofertas de compra do material militar . Ao concurso de 1994 foram duas empresas, a Demolis e a Neólogos, que apresentaram valores de aquisição quase idênticos, respectivamente, 7$oo e 7$50/kg. A DSM acabou por anular o concurso depois de receber, no dia de abertura das propostas, um fax de Humberto Cordeiro, sócio-gerente da Cordimáquinas, garantindo uma oferta de n$oo/kg e denunciando a existência de cambão entre um associado da respectiva empresa e os outros dois concorrentes. E Cordeiro garantiu ao Exército que o sócio não tinha entregue a proposta acordada porque alguém lhe tinha oferecido mi1 contos. Uma situação negada pelo acusado à PJM, garantindo que não avançou para o concurso porque não tinha 8o mil contos e receava ficar com a responsabilidade de pagar o material.
Mas a argumentação de Cordeiro terá convencido a DSM - além de que os valores oferecidos eram baixos acabando esta por anular o concurso público e avançar para o ajuste directo através de negociação, que veio a ser ganho pela J. Soares & Filhos, que ofereceu i2$io/kg de material militar. O caso não acabou por aqui, uma vez que, segundo os documentos, a DSM fez uma sobreavaliação da tonelagem de sucata a alienar, isto é, das sete mil previstas no caderno de encargos apenas 4400 existiam realmente. Um erro crasso a que se juntou outro: quando a firma se preparava para levantar o material de guerra, constatou-se a existência de várias dezenas de blindados Saladin e Panhard e carros de combate M-47 que, ao abrigo do Tratado Internacional sobre Forças Armadas Convencionais na Europa, assinado em Viena e ratificado por Portugal, não poderiam ser alienados.
"Em face do 'cenário' envolvendo todo este processo, a DSIWExército acabou por ficar 'refém' do adjudicatário J. Soares e Filhos, Lda e, perante a urgência em retirar o material obsoleto, pode inferir-se que foi aquele o grande 'beneficiário' dos sucessivos 'erros' cometidos pela DGM...", revelam os documentos consultados depois de a PJM ter inquirido quatro dos militares do Exército envolvidos no processo de alienação.
A PJM inquiriu diversos militares, como os responsáveis envolvidos na adjudicação do material militar, a começar pelo brigadeiro Silva Cordeiro, actualmente com a patente de major-general, na altura director da DSM (1993/98), e do coronel Rodrigues de Almeida, que estava na subdirecção do mesmo órgão. E é este subdirector que garante que houve negociações entre a empresa que ganhou o concurso e o director da DSM para fornecimento dos materiais militares que iriam servir de compensação ao empresário José Soares. Também um coronel, Roque Esteves, colocado na 4.' Repartição do Estado-Maior do Exército, e dois majores da DGM, responsáveis pela secção financeira e pela repartição de material, foram inquiridos. "Disse que houve algumas exigências do senhor José Soares, que se sentiu prejudicado, tendo o mesmo apresentado uma lista de material para substituição dos blindados que não podia levantar", referiu o responsável pela repartição de material da DSM à PJM, com a inquirição de José Soares a clarificar que ficou acordada com o director a cedência de 1800 Uzis, 40 Polsens e armas antiaéreas de 40 mm que haviam sido desmilitarizadas. E garantiu que as Uzis foram vendidas depois para o Reino Unido, à Trident Arms.
A inquirição do subdirector da DGM confirma que as Uzis foram cedidas ao empresário, argumentando que já não estavam no canal de distribuição às unidades, mas sim guardadas em depósitos: Tancos, Figueira da Foz e Tomar. Uma informação desmentida à NM por fontes militares. "Estavam embaladas, diria mesmo virgens, pois os gatilhos estavam parafinados. Foi um negócio da China. Só um louco é que as mandava incinerar depois de as comprar a 12 escudos o quilo", referem, adiantando que as armas, depois da viagem para Inglaterra, "de certeza já seguiram para África, América do Sul ou Médio Oriente". As mesmas fontes militares referem que o processo ainda se encontra em investigação na PJM, mais de quatro anos depois de ser aberto, e nove anos após a ocorrência dos factos.
OS CARROS DO EXERCITO

Corria 1993 e o Estado-Maior do Exército decidia avançar com o primeiro concurso público do ano. O objectivo era adqui•rir 30 a 40 viaturas ligeiras, mas o caso tornou-se rocambolesco ao prolongar-se pêlos dois anos seguintes com a DSM a despender 1.345.073 euros em... 88 automóveis. A PJM só iniciou as investigações em 1999 dando ao caso uma tipificação criminal de "aceitação de interesse pessoal", acabando por indiciar como arguidos o tenente-general Adelino Coelho, que foi quartel-mestre-general e director da Logística do Exército entre 1992/94 e o coronel Augusto Sousa Neves, promovido entretanto a major-general. Segundo conseguimos apurar, os dois oficiais estão actualmente em situações distintas. Adelino Coelho reformou-se em 1998 e Sousa Neves passou à reserva, encontrando-se em efectividade de serviço desde 2000. É, actualmente, director da Direcção de cos de Pessoal (DASP) do Exército, entidade que desde 1 de Janeiro de 1999 aglutina a ex-Repartição de Assistência na Doença aos Militares do Exército, local onde já estiveram este ano brigadas da Direcção Central de Investigação da Corrupção e Criminalidade Económica e Financeira (DCICCEF) da PJ para interrogatórios e buscas num processo de alegadas burlas nas comparticipações médicas do Exército.
Vamos aos factos mais relevantes de um caso que nunca foi tornado público e que actualmente repousa na secretária de um dos dois juizes de instrução que prestam serviço na PJM. Ao concurso público de 1993 disseram "sim" várias empresas do ramo, com a pré-selecção a recair sobre os modelos Fiat Tipo 1.7 DS e Ope1 Astra GL 1.7 D. O tenente-coronel Leandro, que chefiava a Repartição de Manutenção de Material Auto da DSM (entre Abril e Outubro de 1993) e actualmente na situação de reserva, garantiu aos investigadores da PJM não se recordar de ter sido nomeada a comissão de avaliação das viaturas, salientando que a tarefa coube a um subordinado seu que exercia as funções de adjunto do chefe da referida repartição do Exército.
Uma informação confirmada pelo tenente-coronel Pimentel Cruz, explicando ter tido também a colaboração de um tenente, acabando os dois por propor a compra do modelo da Opel "por ser a viatura que tinha melhor relação preço/características técnicas e, embora o preço fosse superior ao Fiat Tipo, este valor diluia-se nos custos de manutenção, nos dois anos seguintes", refere a documentação à qual tivemos acesso.
O parecer colheu pouco junto de quem efectivamente decidiu a compra dos automóveis, com o general Adelino Coelho a decidir-se, não por 30 a 40 viaturas de uma só marca, mas por 25 Opel Astra e outras 25 Fiat Tipo. Mas o caso não terminou por aqui. Os investigadores da PJM referem que se recorreu à figura da "aquisição por extensão" do concurso público de 1993 para se comprarem mais 48 carros nos anos seguintes, com a totalidade dos gastos a chegarem aos quase 1,4 milhões de euros (cerca de 270 mil contos). Assim, em 1994 chegaram ao Exército mais 16 automóveis de cada uma das marcas e modelos acima referidos, com o ano seguinte a trazer mais quatro Opel Astra, sendo inclusivamente pagos outros dois Fiat Tipo para o Colégio Militar.
A inquirição ao coronel Pinto da Silva, que esteve colocado na DSM entre Setembro de 1993 e Julho 1997 e exerceu as funções de chefe de repartição de material, revelou que o oficial recebeu ordens do seu chefe hierárquico para proceder às aquisições de 1994 "por ser a forma mais fácil de adquirir viaturas, aproveitando as verbas do ano económico de 1993", justificações que se repetiram para as compras do ano seguinte, ainda que declarasse não saber porque apenas se privilegiaram as compras do modelo alemão em 1995. Tornando a garantir que as ordens foram superiores, salientou que as extensões do concurso público de 1993 "visavam a normalização da distribuição individual de viaturas aos comandantes das Escolas Práticas e Regimentos".
Classificando o caso como uma "situação nebulosa e pouco ortodoxa", a PJM refere que "poderá eventualmente ter resultado aceitação de interesse pessoal dos elementos intervenientes no processo de aquisição de viaturas", indiciando como arguidos o general Adelino Coelho e o então coronel Augusto Sousa Neves, dando como concluída a investigação e remetendo-a para o juiz de instrução no final de 2001. "Continua por lá à espera", conclui uma fonte militar.
SERVIÇO PARADO

A convulsão interna vivida na PJM desde o ano passado, depois de um conflito entre o actual director da instituição, majorgenera] Governo Maia, e o subdirector, coronel Alcino Roque, é apontada por fontes militares como estando na origem do bloqueamento da investigação de numerosos processos. "Até ao final do ano passado, pouco mais de três dezenas de processos-passaram à fase de instrução, quando, no ano anterior, a contabilidade ultrapassou os 150 processos", afiançam.
Um problema que já se anunciava no relatório-denúncia do ex-subdirector da instituição, exonerado em meados do ano passado pelo ministro de Estado e da Defesa Nacional, Paulo Portas.
"Os processos que passam à instrução são poucos e apenas ninharias penais", diz o relatório. Uma situação que não está a agradar a vários investigadores da PJM e até a magistrados que prestam serviço na instituição. A situação é negada em comunicado pelo director da PJM, que devolve as criticas de passividade à gestão do ex-subdirector da PJM. Em tribunal correm agora dois processos por difamação entre os dois militares. Mas a NM sabe que há não muito tempo se verificou urna discussão entre o director da PJM e um dos juizes que está destacado na instituição, com o magistrado a questionar a paralisia instalada nos serviços.
Um diferendo de difícil solução, quanto mais não seja porque ainda não existe (ou foi divulgado) o relatório de actividades de 2002. Contudo, analisando os mapas do trabalho efectuado pela PJM em 2000, constata-se que estavam em investigação 182 processos, com 141 deles a ficarem concluídos. E, destes, 109 passaram à instrução, juntando-se aos 353 que vinham do ano anterior e aos 135 que ali entraram directamente. No total, estavam em instrução 597 processos, tendo ficado concluídos 237, dos quais 215 levaram o selo de acusação. O movimento processual de 2001 foi em tudo idêntico ao de 2000, estando 186 processos em investigação, dos quais 153 foram concluídos, passando 107 à fase de instrução, onde se juntaram a mais 545 processos.
No final do ano, 256 processos ficaram concluídos, com 114 a levarem a acusação.
"E, ao contrário do que acontece desde Março do ano passado, havia processos de grande envergadura", afiança a fonte.
O relatório fazia também referência àquilo que classificava como ausência de coordenação na PJM. "Não há ao nível nacional, como orientação das leis internas do serviço, nenhuma reunião de coordenação. As NEP [Normas de Execução Permanente] referem três tipos de reuniões de coordenação dirigidas pelo director, que abrange todo o serviço. Das 23 calendarizadas desde a chegada do Exmo. Senhor Major-General Governo Maia; uma, apenas uma, e ligeira, foi cumprida", refere a denúncia do homem que exerceu durante 16 anos as funções de subdirector da PJM, e foi exonerado a 21 de Agosto de 2002.
O investimento na PJM tem deixado algo a desejar, "...houve a preocupação de não se empolarem as estruturas orgânicas da PJM ou os seus efectivos de pessoa], atento, sobretudo, ao âmbito da investigação criminal em causa. Alcançou-se, assim, uma acentuada diminuição nos quantitativos de meios humanos sem prejuízo da eficiência...", refere o preâmbulo do Decreto-Lei n.° 200/2001, de 13 de Julho, sem especificar quantitativos, ainda que uma fonte militar tenha garantido que chegou a ser equacionado o encerramento de duas das delegações e a redução para metade do efectivo da PJM. Algo que se tem prenunciado nos últimos anos depois de um forte investimento in-icial no efectivo da PJM. Criada em 1975, a instituição possuía 123 pessoas no quadro de pessoal militar, número que subiu para 193 no ano seguinte, criando-se mais duas delegações (Coimbra e Évora), que se juntaram à directoria e à delegação do Porto. A partir de 1982 o quadro de militares da PJM começou a baixar, passando nesse ano para apenas 109 elementos.
O quadro de pessoal civil da Polícia Judiciária Militar já teve seis juizes, estando agora reduzido a dois. E é precisamente um dos juizes restantes, Moisés Rodrigues, que já se insurgiu contra a "limpeza" no serviço alegadamente decretada pelo major-general Governo Maia. Em carta de 21 de Setembro de 2002 dirigida ao director da PJM (com conhecimento do ministro da Defesa , do Estado-Maior General das Forças Armadas e dos titulares máximos dos três ramos), o juiz louva quatro militares "obrigados" a deixar o serviço naquilo que intitula "heterotransferência dos militares".
"Recordo ainda o não há muito tempo passado fim de tarde, em que este militar, pedindo-me licença, me entrou pelo gabinete e, com a voz embargada (um homem não chora!), me comunicava que havia recebido ordem de transferência para outro serviço. Foi, talvez, porque já houve outra, a minha pior tarde deste ano de 2002", escreve o juiz dando nome ao militar e desfilando um cumculo intocável na investigação e instrução de processos, de resto um homem "perfeitamente apto para dirigir a Repartição Centra] de Investigação da PJM". Fontes da PJM adiantam-nos que a "limpeza" encetada por Governo Maia já atingiu pelo menos quatro tenentes-coronéis, dois majores, três sargentos-ajudantes e originou a saída de um juiz, Artur Vargues.
OS RADARES E OS BLINDADOS

"Acontece, ainda, que a equipa de investigação defrontou-se, diversas vezes, com um muro de silêncio de alguns responsáveis actuais pêlos diversos serviços e órgãos contactados, e só a habilidade e persistência dos seus elementos permitiu reunir elementos suficientes para servir de suporte ao presente relatório". Remetido com o selo de "Secreto", no inicio de 2000, ao então ministro da Defesa, Castro Caldas, este excerto do relatório da inspecção extraordinária da Inspecção-Geral das Forças Armadas (IGFAR) à compra do Exército de três radares Pstar e um Ratac e sete blindados Panhard é elucidativo da extrema complexidade das investigações que são feitas às compras de material no seio das forças armadas. Os documentos a que tivemos acesso demonstram que a inspecção da IGFAR, a "mais complexa e delicada" de sempre da instituição, foi realizada entre 20 de Outubro e 15 de Dezembro de 1999, ainda que todo o processo de investigação se tenha prolongado por mais de cinco anos.
"Em determinada altura, o próprio inspector-geral das Forças Armadas teve de intervir, junto do secretário-geral do Ministério da Defesa Nacional, para que fossem disponibilizadas determinadas fotocópias que a equipa de inspecção considerava muito importantes para o esclarecimento de determinadas dúvidas existentes", refere o relatório, assinado a i de Março de 2000 pelo próprio inspector-geral, tenente-general Aurélio Manuel Trindade, que se declarava absolutamente convencido de que, dadas as "inúmeras ilegalidades detectadas", havia razões para o envio de um exemplar do relatório para o Tribunal de Contas, algo que Castro Caldas decidiu acatar, conforme despacho a que tivemos acesso, e remetendo a futura investigação do caso para a PJM.
Um processo alegadamente cheio de ilegalidades, a começar pela evolução do preço dos radares portáteis Pstar , construídos pêlos americanos da Lockbeed Martin's, com os três pretendidos a passarem de 3.976.000 dólares para 5.300.000 e, depois, para os 6.106.200 dólares. Caricato, quando a IGFAR nota que não se encontrou em todo o processo justificação para a subida dos preços, dado que os radares Pstar "iam estando cada vez mais ultrapassados tecnicamente, à medida que os anos iam passando. Tal se comprova pêlos preços apresentados em 1999 para a aquisição de mais cinco Pstar que, no conjunto, ficavam mais baratos do que os três inicialmente adquiridos".
A inspecção concluía que as entidades encarregues de negociar o contrato não defenderam o Estado português, "antes pelo contrário, aceitaram pacificamente os aumentos de preços, tendo, inclusivamente, justificado o aumento de preço de 5.300.000 para 6.106.200 dólares com 'custos administrativos e variações cambiais' quando estas não poderiam existir porque todo o 'negócio' foi feito em dólares americanos".
A então IGFAR era contundente na avaliação de um "negócio" que também se estendeu à compra de sete Panbards, viaturas blindadas ligeiras de reconhecimento destinadas à Brigada Aerotransportada Independente (BAI), um veiculo anfíbio, aerotransportável e desenvolvido nos anos oitenta pela França e que chegou a Portugal no inicio dos anos noventa através da compra de 18 blindados. Uma aquisição que "deixa muito a desejar" tendo começado pelo lançamento de um concurso público internacional que "passou por diversos momentos conturbados, onde proliferam as alterações às condições iniciais do concurso" e "grande indefinição nos seus documentos de suporte", refere a IGFAR, lembrando que o concurso público evoluiu para negociação - "que não chegou a ser feita" - e dai para o ajuste directo.
Finalmente, quanto à compra de um radar de localização de alvos móveis, o Ratac, também de origem francesa, a IGFAR alerta para o facto de não ter existido sequer contrato escrito, tendo isto inviabilizado o pedido de visto do Tribunal de Contas, além de alegadamente se verificar um "pagamento antecipado à firma quando este só poderia ter existido se o processo tivesse sido enviado para visto prévio do Tribuna] de Contas", referem os documentos garantindo que tal procedimento "não passou de financiamento ilegítimo" à firma fornecedora do radar. A NM sabe que estas situações detectadas na inspecção extraordinária da IGFAR foram remetidas a 30 de Março de 2000 pelo então ministro da Defesa, Castro Caldas, à PJM. Mas a investigação policial do "Processo 140/00 contra Incertos" demorou a arrancar, andando de mão em mão e até passando da primeira para a 21 Repartição da PJM. "Em 2001, praticamente ninguém tocou no caso", refere uma fonte militar, destacando que se tratava de um processo com quase 800 páginas e quatro pastas de documentação anexa que "ia dar onde dão quase todos os casos, à Direcção do Serviço de Material do Exército". Actualmente, segundo conseguimos apurar, o processo já está com um juiz de instrução da PJM e tem vários arguidos.
Mas ainda envolto em segredo .
É que o "muro de silêncio" continua a imperar . Confirmado pelas denúncias em carta dirigidas em 1997 pelo general Bacelar Begonha, director da PJM entre 1993/2001, ao chefe de gabinete do chefe do Estado-Maior do Exército (CEME), Silva Viegas, actual CEME. Bacelar queixava-se da "proibição de investigação pela PJM, pelo Exmo. Chefe do EstadoMaior do Exército - Exmo. General Octávio Cerqueira Rocha", enquanto não fosse dado conhecimento ao Estado-Maior do teor das investigações que decorriam na Direcção de Serviço de Material e no Comando Logístico do Exército por suspeitas da prática de crimes como infidelidade e corrupção. Silva Viegas argumentava que os ofícios do director da PJM não apresentavam bases para considerar haver ilegalidades, defendendo que o segredo de justiça não se estendia ao chefe do Estado-Maior do Exército.
Mas em todo este rocambolesco panorama de quem investiga quem e quem autoriza quem, nem sequer escapa a própria InspecçãoGeral da Defesa Nacional (IGDN), que esteve durante este ano em polvorosa. Em Maio, um dos coordenadores de um dos sectores mais sensíveis da inspecção, a área financeira, recebeu a notícia, que não iria ser renovada a respectiva comissão de serviço. Fontes militares garantem que terão sido vários os "atritos" entre o então actual inspector-geral, tenente-general Leal Estevens, e alguns inspectores, como o comandante Sadler Simões, por sinal um dos mais antigos militares ao serviço da IGDN.
A saída de Sadler Simões surge no seguimento da dispensa de serviço dos coronéis Ferreira de Sousa e Rui Rodrigues e do afastamento voluntário do coronel Adão Pereira por causa de um parecer do Ministério da Defesa que afasta militares na reserva de cargos de chefia a conseguir através de concurso público.
"Sempre houve dificuldades e atritos com o inspector-geral que encarava as opiniões contrárias como ofensas", relembra uma fonte militar. A divulgação dos resultados de uma auditoria interna, que permanecia em segredo, onde foram detectadas irregularidades financeiras, com enfoque para despesas sem justificação do próprio inspector-geral, serviram para agitar ainda mais as águas. O militar que criou a IGDN, na altura ainda com o nome de Inspecção-Gera1 das Forças Armadas, e que se manteve no cargo entre 1993 e 2000, não poupa críticas. "Vejo tudo o que se está a passar com preocupação e tristeza", diz, temendo que a Inspecção "possa sair desacreditada disto tudo". Aurélio Trindade, hoje na reforma, passa do conselho - "os oficiais que estão a sair sabiam muito da área de inspecção e, se fosse eu, pensaria duas vezes antes de os dispensar" - a uma proposta radical: "Não me repugna nada que o inspector seja um civil. Se calhar, esta era a altura ideal para isso." Vários militares contactados temem que as substituições de tantos coordenadores em tão pouco tempo afecte o bom funcionamento da instituição.
A NM teve acesso à lista confidencial do plano de trabalho anual da IGDN, onde estão previstas mais de trinta auditorias a serviços ou entidades dos três ramos das Forças Armadas e também do próprio Ministério da Defesa Nacional. As auditorias da IGDN destinam-se a analisar os meios humanos e materiais, bem como os programas e sistemas e as questões de âmbito financeiro. Um plano anual que irá dedicar obviamente bastante atenção aos organismos dependentes do Estado-Maior do Exército, com a lupa da inspecção a cirandar, entre muitos outros, pelo Regimento de Transmissões e de Lanceiros n.° 2, pelo Batalhão de Adidos (já realizada) e do Serviço de Transporte, pelo Grupo de Aviação Ligeira do Exército e pela Manutenção Militar. De fora também não vão ficar a Academia Militar e o Centro de Recrutamento de Lisboa, com os inspectores a darem um salto a Tancos para saber como está a situação no Comando das Tropas Aerotransportadas.
Um trabalho que uma fonte da IGDN considera inglório. "Sofremos pressões de todos os lados e depois constatamos que as inspecções não servem praticamente para nada, porque, quando vamos novamente aos serviços, constatamos os mesmos problemas identificados nas inspecções anteriores", refere, declarando não compreender a não divulgação pública dos relatórios ou até a ausência de interesse parlamentar. "Quando é que foi divulgado por um ministro da Defesa um relatório da IGDN? E, já agora, porque é que a Comissão de Defesa do Parlamento nunca teve acesso ou sequer pediu qualquer destes relatórios?" Miranda Calha é o deputado indicado pelo PS para a vice-presidência da Comissão de Defesa e o homem que já esteve quatro anos na presidência da comissão. "Não me lembro de alguma vez ter sido requerido qualquer relatório da IGDN pêlos deputados." À questão da estranheza da situação, o deputado responde de forma algo evasiva: "O Parlamento tem 230 deputados com as sensibilidades mais diversas. Há um espaço de liberdade total para os deputados fazerem propostas nesse sentido. Se ainda não se verificou..." Aurélio Trindade alinha pela publicidade dos relatórios, pois isso "pode servir para que haja uma pressão para se corrigirem as deficiências e as ilegalidades", mas o general não se lembra de qualquer divulgação pública das auditorias em sete anos que esteve à frente da IGDN. Castro Caldas, que foi ministro da Defesa entre Outubro de 1999 e Julho de 2001, também confirma que nunca lhe foi pedido nenhum relatório pela Comissão de Defesa : "Tenho quase a certeza de que cheguei a enviar à comissão o plano anual das inspecções, mas nunca pediram nada." Frontalmente contra a divulgação pública dos relatórios de auditoria por possuírem "informações confidenciais", Castro Caldas colhe a oposição do general Loureiro dos Santos, ex-chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas no inicio da década de noventa e também ex-ministro da Defesa nos IV e V Governos (Novembro de 1978 a Dezembro de 1979): "Não veria mal nenhum desde que não fossem divulgadas matérias classificadas. Considero que seria do maior interesse a publicação, para exigir às Forças Armadas a mesma transparência que devem ter todos os outros sectores do Estado."
VIATURAS TÁCTICAS E AMBULÂNCIAS

A PJM está a investigar a legalidade da extensão de dois concursos públicos, lançados pelo Estado-Maior do Exército, que levaram à aquisição de 21 ambulâncias e 20 viaturas tácticas, tudo no valor de quase 1,5 milhões de euros. Parte das compras foi iniciada em 1994 e recebeu o aval de responsáveis como o então general Espirito Santo, o então brigadeiro Martins Barrento ou Cerqueira Rocha, general CEME. O inicio do processo de aquisição das 20 viaturas tácticas de 4/5 toneladas começa com uma nota da Direcção de Serviços de Material (DSM), enviada a 22 de Julho de 1994 à 4.* Repartição do Estado-Maior do Exército, onde se informava que a firma Amave, Amaral Veículos, SÁ mantinha, até 30 de Agosto do mesmo ano, os preços das Iveco 40.10 WM 4x4 e Iveco 90.17 WM 4x4, isto é, io.i44.20o$oo por viatura, quase 203 mil contos (pouco mais de um milhão de euros) para a totalidade da encomenda.
A compra inseria-se na vontade do Exército em unificar e modernizar o contingente de viaturas tácticas, tendo por base as necessidades previstas no horizonte temporal de três anos, com os investigadores da PJM a notarem que os valores de aquisição por viatura eram inferiores àqueles praticados um par de anos antes pela mesma empresa. "O que é normal e observado no mercado automóvel é que os preços apresentam uma tendência de subida ao longo dos anos (inflação, aumento dos custos de produção)", referiam, salientando que a informação de compra do chefe de repartição, tenente-coronel Pinto da Silva, mereceu um "concordo" baseado em três argumentos: manter a normalização (já existiam no serviço carros idênticos), as Iveco tinham respondido bem quando o Batalhão de Transmissões n.° 4 esteve em Moçambique e o apoio pós-venda tinha-se mostrado eficaz.
Assinava o parecer o então brigadeiro Silva Cordeiro, que exercia as funções de director da DSM. E depois vinham mais confirmações do subchefe do Estado-Maior do Exército, o então brigadeiro Martins Barrento (1992/95), e do quartel-mestre-general, general Espirito Santo, responsável que foi também CEME entre 1997/98 e chefe do EstadoMaior General das Forças Armadas entre 1998/00. O "autorizo" a aquisição, em forma de despacho, datado de 15 de Setembro de 1994, foi assinado pelo então chefe do Estado-Maior do Exército (CEME), general Cerqueira Rocha (1992/97).
As viaturas acabariam por seguir já em 1995 para o Exército português, com uma informação que chegava à chefia do Serviço de Transportes a referir claramente que os carros da Iveco tinham sido adquiridos "por ajuste directo ao Concurso Público 15/90", ou seja, ao abrigo de um concurso público lançado cinco anos antes e que já tinha servido para comprar outras idênticas viaturas da marca Iveco. Um dos pareceres, assinado pelo então general Espirito Santo, invocava também as "provas dadas pelas viaturas", começando por realçar: "Julgo de aproveitar a extensão do concurso para..." As investigações constataram o óbvio. "Nesta aquisição, assim como noutras já efectuadas, responsáveis da DSM e entidades hierarquicamente superiores continuam a invocar a figura da extensão de concurso público para justificar aquisições de modo faseado ou continuado", referem as investigações da PJM, salientando que a legislação não permitiria tais tomadas de decisão e observando que "poderão, ainda, eventualmente, não terem sido respeitadas" as normas das leis que regulam os concursos públicos, o ajuste directo com negociação, o código do processo administrativo "ou outra legislação avulsa relativa às despesas com aquisição de bens para o Estado".
A pouco clara extensão de outro concurso público , referente à aquisição de ambulâncias, levou a PJM a ter poucas dúvidas sobre a existência de crime aceitação de interesse pessoal - ainda que nos documentos aos quais tivemos acesso não estejam identificados arguidos remetendo a acusação para "incertos" que promoveram, durante os anos de 1995 e 1996, a aquisição pelo Exército de 21 ambulâncias à Renault Portugal no valor de cerca de 94 mil contos (quase 468 mil euros).
A coisa começa com mais um concurso público, lançado em Junho de 1995, para a aquisição de... dez ambulâncias (valor total da aquisição: 44.584769$oo).
Que rapidamente se transformaram, em Outubro do mesmo ano, numa nova proposta para aquisição de mais seis ambulâncias, com o despacho da Repartição de Material do Exército a referir a "grande escassez deste equipamento, o facto de haver verbas disponíveis e o preço unitário ser muito bom comparado com as propostas de outros concorrentes". E, pronto, lá se verificou a extensão do concurso público, seguindo mais 26.750.862$oo para a Renault Portugal.
Dois meses depois, ainda em Dezembro de 1995, os mesmos argumentos e mais duas ambulâncias (8.9i6.954$oo) para posterior distribuição à UNAVEM, algo que de resto, garantem os investigadores da PJM, não estava referenciado no plano de aquisições. Finalmente, em Maio do ano seguinte, repetiu-se a dose e lá vieram outras três ambulâncias no valor de i3.375.43i$oo. A investigação da PJM nota que entre a primeira e a segunda proposta de encomenda das ambulâncias mediaram apenas 27 dias, seguindo-se 63 dias entre esta e a terceira proposta, tendo esta última "sido autorizada ainda no mesmo dia". No final, feitas as contas, "constatou-se a aquisição do dobro da quantidade inicial proposta através do concurso público n.° 11/95".
Além disso, a PJM - que iniciou a investigação alguns anos depois da compra das ambulâncias - verificou outras curiosidades do processo que levou à compra de uma ambu'; lância "já previamente seleccionada", explicando que a proposta inicial para a aquisição das primeiras dez ambulâncias "foi elaborada no dia imediato à inspecção dos requisitos técnico-sanitários" e que as 18 restantes, adquiridas em três fases distintas, tiveram todas a mesma data nas requisições de aquisição.
As investigações foram mais longe ao afiançarem que "as necessidades apareceram, à posterior, a justificar as aquisições já efectuadas", quando "o lógico e o racional seria que, a priori, as necessidades justificassem as aquisições pretendidas". Uma,aferição baseada no facto de não existir qualquer nota de planeamento prévio antes de ser efectuado o concurso público, com as "listas de ambulâncias citadinas" a só surgirem no final de 1995 quando o Exército já tinha comprado e gasto milhares de contos em vários conjuntos destes veicules. Os relatórios da PJM referem também o desconhecimento relativo à identificação da comissão ou júri, que apreciou as propostas dos concorrentes com vista à selecção efectuada das ambulâncias e respectivo relatório devidamente fundamentado, além de não saberem a quais unidades do Exército "foram distribuídas as ambulâncias e as respectivas guias de entrega".
A PJM refere a hierarquia de autorizações de todas as propostas de aquisição das ambulâncias, que foram elaboradas pela Direcção de Serviços de Material (DSM) e pelo então tenente-coronel Pinto da Silva. Tiveram o parecer afirmativo do director da DSM, brigadeiro Silva Cordeiro, e culminaram com a aprovação do tenente-general Rui Lobato de Faria Ravara, quartel-mestre-general e comandante de Logística do Exército entre 1995/96. No final destas duas histórias, apetece perguntar onde estão os resultados práticos das investigações da PJM e se estas conduziram a acusações da magistratura. É que, desde que terão ocorrido os factos, já lá vão, pelo menos, oito anos.
FARDAS & Co .
A PJM só começou a investigar a alegada burla, que envolveu as Oficinas Gerais de Fardamento e Equipamento (OGFE), dois anos após a assinatura do contratofantasma que fez o Estado português perder cerca de 1,5 milhões de contos.
O ex-director das OGFE está com termo de residência e paradeiro. A encomenda fantasma às OGFE teve alegadamente como intermediário Riccardo Privitera e a empresa Talismã, sediada em Londres, com a formalização do negócio, em papel timbrado do Ministério da Defesa polaco, a ser considerada pelo governo de Varsóvia como falsa.
A recente extradição da Polónia do extenente-coronel do Exército italiano e alegado intermediário na burla , Riccardo Privitera, trouxe de novo à ribalta um caso que começou em 1999, quando as OGFE assinaram um contrato-fantasma para o fornecimento de quase 90 milhões de euros em fardamentos e outros equipamentos às Forças Armadas da Polónia. O contrato foi assinado a 22 de Abril de 1999, com o estratagema lesivo do Estado português a passar pelo alegado accionamento da garantia bancária, depositada pelo Exército, para fazer face, entre outras coisas, à cláusula de confidencialidade que estava prevista no contrato e que o intermediário garantiu ter sido violada pela publicação de uma noticia num jornal austríaco.
O porta-voz do Exército, em comunicado, garante que os factos relativos à celebração do referido contrato foram objecto de investigação interna sob a forma de uma "inspecção extraordinária às OGFE, cujo relatório foi prontamente remetido ao meritissimo juiz de instrução criminal da PJM". Uma justificação que colhe algumas reticências das fontes da Defesa por nós contactadas. "Dois anos? É muito, até porque havia factos do processo que eram perfeitamente óbvios em termos de investigação, como falsificações grosseiras de documentos".
Os passos seguintes confirmam que a investigação da PJM foi rápida, uma vez que, decorridos pouco mais de cinco meses da abertura do processo, era detido o então director das OGFE, coronel Machado Joaquim, que ficaria em prisão preventiva no presídio militar de Eivas por ordem do juiz de instrução criminal. Passados pouco mais de dois meses, a 22 de Dezembro de 2001, acabava a prisão preventiva de Machado Rodrigues. Durante os interrogatórios da Judiciária Militar, vários nomes da hierarquia superior do Exército foram mencionados, situação que se terá novamente verificado durante a inquirição do intermediário no negócio, detido na Polónia desde 24 de Março do ano passado e extraditado em meados de Fevereiro deste ano para Portuga!.
O DN garantiu que Privitera denunciou três generais do Exército com intervenção no contrato-fantasma das fardas e afins para a Polónia. Em causa estarão dois tenentes-generais (três estrelas) e um general (quatro estrelas).
Informações que não foram confirmadas pela PJM que, em comunicado, refere que nada pode dizer devido ao segredo de justiça, também o porta-voz do Exército garante que "desconhece, em absoluto, quaisquer factos que indiciem, ou de qualquer modo possam indiciar, o envolvimento de oficiais generais na prática de factos ilícitos no âmbito do sobredito processo" que envolve um contrato realizado pelas OGFE que precisou de pareceres dos ministérios dos Negócios Estrangeiros e da Defesa Nacional, sendo que a tutela das OGFE estava delegada pelo então ministro da Defesa , Veiga Simão, no secretário de Estado José Penedos.
Na altura, o general Martins Barrento era o chefe do Estado-Maior do Exército, funções que exerceu entre 19 de Março de 1998 e 18 de Março 2001. A inquirição do general, a que tivemos acesso, revela um oficial de pouca memória sobre factos essenciais para o esclarecimento da fraude nas OGFE. Ouvido a 16 de Setembro de 2001, Martins Barrento, então já na reserva, garante que "esteve até certo ponto despreocupado com isto (...) mesmo face àquilo que considerou ser um comportamento menos correcto por parte da Talisman". Questionado se alguma vez se referiu ao assunto em causa como "isto é um assunto encerrado" e "faz de conta que não ouvi nada", no seguimento da apresentação do então director das OGFE no Estado-Maior do Exército, Martins Barrento refuta peremptoriamente ter proferido tais afirmações, ainda que reconheça ter dito, após a apresentação do relatório da Inspecção-Geral do Exército (IGE), qualquer coisa como: "Ainda bem que as conclusões a que se chegou foram estas, o assunto está encerrado e o coronel Joaquim pode reassumir funções." O então chefe do Estado-Maior do Exército salienta, inclusivamente, que chegou a elaborar um despacho escrito a ordenar o regresso do coronel Machado Joaquim à direcção das OGFE. Tudo depois da já referida auditoria da IGE, que demorou cinco dias e concluiu, na versão do general, a "inexistência de qualquer indício de ordem disciplinar ou criminal". Isto quando a garantia bancária no valor de quase 14 milhões de euros já se tinha praticamente esfumado em rocambolescas movimentações bancárias. Aliás, em Outubro e Dezembro de 2000, a Talisman terá retirado os últimos 3.845.990 euros, sendo também de 12 de Dezembro do mesmo mês o memorando do coronel Machado Joaquim onde este dava a conhecer ao comandante de Logística do Exército, tenentegeneral Correia Leal, a embrulhada em que estava metido, com o negócio das fardas adiado sine die, as sucessivas reduções das garantias bancárias, o pagamento de comissões antecipadas e o levantamento de garantias.
Um cenário que levou Correia Leal, no próprio dia, a enviar um parecer confidencia! (já antes lho terá dito verbalmente) a Martins Barrento alertando-o para a confusão instalada, propondo a suspensão do coronel Machado Joaquim do cargo de director das OGFE até aos resultados de uma auditoria a realizar pela IGE. É que, para o tenente-genera!, havia "indícios [ainda que simples] de terem sido executadas acções que possam pôr em causa a boa gestão de dinheiros públicos, a imagem das OGFE e, consequentemente, do Exército e do Estado".
E se nunca ninguém, ao que parece, questionou a competência do coronel Machado Joaquim para realizar um negócio tão avultado, dificilmente se percebe que não tenha havido conhecimento superior do que se estava a passar.
Uma tese apresentada por Privitera logo na sua primeira inquirição realizada a 14 de Fevereiro de 2003, com Martins Barrento a reconhecer que ele próprio quando era chefe do Estado-Maior do Exército apenas tinha competência para realizar ajustes directos com dispensa de concurso até montantes que não iam além dos 250 mil euros. A falta de memória de Barrento foi por demais evidente na inquirição, garantindo não conhecer nenhuma das empresas com intervenção no negócio - Talisman, Bumar, Socimarpe - apesar de reconhecer como sua a assinatura em documentos (e até um fax) onde eram mencionadas as ditas empresas. Desconhecimento alegado também em relação aos preliminares do negócio, ainda que exista um documento onde esses preliminares estão referidos juntamente com um cartão assinado pelo seu chefe de gabinete.
Depois, Martins Barrento salienta que comunicou o caso ao ministro da Defesa , "sobretudo por ter receio que a comunicação social lhe fizesse alguma pergunta sobre o assunto e não soubesse do que se tratava" e manteve-se "despreocupado" até à inquirição. Aliás, o general desejou vincar nas declarações ao juiz de instrução que "nunca cogitou a hipótese de tudo isto ser uma fraude" e que "os interesses das OGFE e reflexamente do Estado português estariam devidamente acautelados sob o ponto de vista jurídico do contrato".
ESQUEMA GIGANTESCO

"A justificação é sempre a urgência para se cometer um sem-número de ilegalidades", declara um investigador da PJM habituado ao longo dos anos a este género de desculpas da hierarquia militar quando estão em causa investigações à aquisição de material pelas Forças Armadas. "Basta lembrar as mais de 820 aquisições detectadas pela auditoria da Inspecção-Geral das Forças Armadas, realizada em 1997, à Direcção dos Serviços de Material do Exército, onde constavam mais de 30 milhões de contos gastos na compra de material, a maior parte por ajuste directo e sem concurso público." Uma denúncia tornada pública no ano passado pela Rádio Renascença e considerada "especulativa" pela direcção da PJM, que apenas notou que o processo estava em investigação e que ia abrir um inquérito "sobre a divulgação de informações parcelares que podem constituir eventual violação do segredo de justiça". Só não explicou é porque é que seis anos depois da inspecção da IGFAR não apareceram publicamente conclusões ou foram indiciados arguidos.
Na base de tudo isto parece estar a participação de Portuga] em operações de paz espalhadas pelo mundo que exigiram a rápida aquisição de meios, algo que não convence a quase totalidade das fontes militares por nós contactadas, podendo as opiniões resumir-se numa citação de um militar da PJM habituado a lidar com investigações complicadas. "É um jogo gigantesco, porque não se trata apenas de carros ou blindados, mas tudo o que lhe está inerente, como as peças de substituição e as percentagens que se ganham em tudo isto.
E toda a gente se protege." Só assim se explica como o vulgar cidadão contínua sem conhecer os resultados, ou sequer que existem processos, durante o ano de 1996, como o 301, o 303 e o 305 por alegados crimes de infidelidade na aquisição de viaturas e material pelo Exército. Ou no ano seguinte, os processos 151 e 158, por alegada corrupção ou infidelidade na prática de desvios de fundos na GNR e na Marinha. Ou, em 1998, mais uma aquisição de material do Exército que adquiriu a forma de processo 48 e uma suspeita de falsidade/infidelidade. Em causa alegadas irregularidades na aquisição de viaturas blindadas ligeiras e de reconhecimento por parte da Direcção de Serviços de Material do Estado-Maior do Exército (com destino à Brigada Aerotransportada Independente), um processo iniciado em Abril e que terá ficado concluído em Novembro do ano passado, altura em que a PJM o entregou ao juiz de instrução indiciando cinco oficiais pelo crime de infidelidade. São eles o coronel Fernando Pinto da Silva, do Instituto de Altos Estudos Militares, os tenentes-coronéis LUÍS Saraiva e Paulo Geada, respectivamente, do Quartel-Geral do Governo Militar de Lisboa e do Colégio Militar, e os majores Gustavo Dias e António Varregoso, o primeiro da Escola Prática de Serviço de Material, em Espinho, o segundo do Estado-Maior do Exército.
Alegadas formas de crimes que se mantiveram no ano seguinte nos processos 63 e 77 para, respectivamente, nova aquisição de material do Exército ou da Marinha. O ano não terminaria sem o alegado peculato na direcção da CASRUNA e a suspeita de aceitação de Interesse pessoal contra incertos devido à aquisição de trinta viaturas ligeiras (T?5) para o omnipresente Exército. Em 2000, é aberto o processo 140 por causa da aquisição de radares da DSM/EME. E isto são apenas uma minoria de casos problemáticos investigados pela PJM que também passam pela detecção de alegadas irregularidades nos processos de substituição da velhinha G3 ou das seguintes aquisições: helicópteros do Exército; autotanques de cinco e dez mil litros; empilhadores de 15 e 24 toneladas; três versões de capacetes de combate; coletes à prova de bala; obuses ligeiros; lança-granadas-foguete; morteiros de 6o e 81 mm; misseis antiaéreos; 42 aquisições independentes de material diverso e... "É um esquema gigantesco liderado por apenas um grupinho que se serve de alguns peões", conclui a fonte militar.
O caso Creoula

É mais um processo a envolver as forças armadas portuguesas numa mega-investigação da Polida Judiciária Militar (PJM), entregue em Março do ano passado ao juiz de instrução, que continua sem a revelação pública da dedução da acusação dos implicados. Um caso que começou com uma denúncia, em 1994, sobre alegadas requisições fraudulentas de tabaco e whisky, isentas por lei de taxas alfandegárias, no navio-escola Creoula. Processo que, nos sete anos seguintes, se estendeu a quase todo o contingente naval da Marinha, com a PJM a detectar irregularidades em 28 navios e a constituir sessenta arguidos, dos quais 27 oficiais. Um esquema que movimentou muitas centenas de milhares de euros, tendo a PJM concluído que foram feitas requisições de cerca de 138 mil maços de tabaco e 228 caixas de whisky superiores ao legalmente estabelecido.
O caso terá começado em 1994 no Creoula, um navio de treino da Marinha com 38 tripulantes e com capacidade para 51 instruendos e um director de treino. Capitaneado na altura pelo comandante Rui Sá Leal (22/02/93 a 23/12/96), surgiram suspeitas de que algo se passava nas requisições de tabaco e bebidas espirituosas que eram feitas sempre que estava para começar mais uma missão. Produtos esses que, por lei, estão isentos de taxas alfandegárias (impostos especiais sobre o consumo), tomando-os substancialmente mais baratos.
Os documentos a que tivemos acesso revelam , de Junho a Outubro, disparidades tremendas nos números das autorizações e dos reais levantamentos de maços de tabaco, algo que estaria inclusivamente em crescendo uma vez que até sem autorização teriam sido levantados sucessivamente 11.050 maços (Agosto), 27 mil (Setembro) e 35.500 (Outubro). Duas novas tentativas de levantamento terão sido feitas em Novembro e Dezembro de 1994, respectivamente de 50 mil e 40 mil maços, quantidades que a PJM julga que não chegaram a ser levantadas, ainda que não haja grandes certezas: "...surgem duas fotocópias de requisições com pedidos exorbitantes de tabaco; pelo facto de a Alfândega não ter fornecido estes originais, julga-se que os mesmos não terão chegado a dar ali entrada e que este material não terá sido desalfandegado e fornecido ao navio".
O Decreto-Lei n.° 566/99, de 22 de Dezembro, estabelece um conjunto de isenções aos impostos especiais sobre o consumo, onde se incluem o tabaco e as bebidas espirituosas a serem consumidos como provisões de bordo das Forças Armadas, das quais se destacam a obrigatoriedade de consumo fora do espaço fiscal português e limites por pessoa e dia de viagem, o que na prática significa dois maços de cigarros ou dez cigarrilhas ou três charutos ou 40 gramas de tabaco para fumar, um litro de bebidas espirituosas ou um litro de produtos intermédios ou dois litros de cerveja.
"Há coisas que nunca ficaram inteiramente esclarecidas", revela uma fonte militar, destacando que se terá chegado à conclusão de que "parte do tabaco e whisky desviado acabou por ser vendida cá fora, nomeadamente em alguns estabelecimentos comerciais". Um negócio com lucro para todas as partes, uma vez que só em impostos especiais sobre o consumo o Estado deixou de cobrar, no caso do whisky, 881,51 euros por cada cem litros de álcool puro (a 20 graus) e quanto ao tabaco, se se usar como exemplo aquilo que hoje custa um maço de Carne] (2,15 euros), facilmente se constata que este género de imposto leva para os cofres estatais 1,3 euros. Contas feitas, segundo a PJM, o crime de peculato atingiu 137.079 maços de tabaco e 2976 garrafas de whisky, tudo no valor de quase 307 mil euros.
As inquirições da PJM mostraram que havia um claro descontrolo na forma como eram feitas as requisições e em quem as tinha de fiscalizar , inclusive no controlo final que era da responsabilidade do chefe de Logística do Comando Naval. Aliás, as dificuldades dos investigadores estenderam-se quando a investigação continuou para outros navios da Marinha, "...os Serviços da Alfândega, por motivo de terem transferido o seu Arquivo Geral, tiveram bastante dificuldade em localizar muitos dos documentos solicitados por esta PJM, alguns dos quais foram obtidos por duplicados recorrendo à intervenção das firmas importadoras", lê-se no processo, revelando este que a última remessa de documentos só chegou à PJM em Março de 2002.
Independentemente disto, logo em finais de Junho de 1997, a equipa de investigadores especificava a forma como eram feitas as requisições de tabaco e bebidas espirituosas: eram os cantineiros, cabos e primeiros-marinheiros que efectuavam os cálculos e preenchiam as requisições que eram assinadas de cruz - sem verem se estavam de acordo com a lei - pêlos oficiais directores das cantinas, comandantes de navios e oficiais imediatos. A despreocupação era tanta que até no Comando Naval quem verificava os pedidos "não impunha rigor nas quantidades autorizadas nas requisições, como ainda incentivava a que os navios em reparação sem missões atribuídas efectuassem requisições", refere a PJM. Os próprios oficiais da Logística do Comando Naval, últimas entidades que assinavam as requisições, nunca detectaram os excessos, o mesmo se passando com o então chefe do Estado-Maior do Comando Naval, Duarte Lima, capitão-de-mar-e-guerra (actual almirante): "...assinou requisições com excessos requisitados, referentes aos navios NRP Augusto Castilho e NRPMandovi, disse que ao assinar as requisições confiou nos serviços do Comando Naval".
Os dados por nós consultados mostram que foi uma nota da chefia do Serviço de Justiça da Armada que remeteu ò processo para averiguações na PJM. Um ponto que hoje as Relações Públicas da Marinha consideram importante.
"O controlo acabou por funcionar, porque fomos nós que denunciámos o caso", refere o comandante Gouveia de Melo, alertando para o facto de haver fortes atenuantes para muitos dos sessenta militares constituídos como arguidos no processo da PJM. "Sabemos que o grande escândalo foi o Creoula e que muitos dos militares foram enganados por falsificações dos impressos de requisições, onde se acrescentavam quantidades que iam directamente para a firma comercial e, depois, esta entregava o material ao indivíduo interessado e ele trazia para o navio apenas as quantidades correctas", observa o comandante, salientando que o núcleo duro de "arguidos principais não deve ultrapassar uma dezena".
No entanto, a lista dos sessenta arguidos constituídos pela PJM inclui 27 ofíriais, 15 sargentos e 18 praças, de serviços como a Direcção de Transportes, Base Naval de Lisboa, Instituto Hidrográfico, Direcção de Abastecimentos, Comando da Zona Marítima Sul, Escola de Fuzileiros, Escola Naval, Centro de Recrutamento de Almada e Direcção de Apuramento de Responsabffidades. "Hoje, os postos destes militares querem dizer pouco, porque na Marinha existe uma rotatividade pelas unidades de dois em dois ou de três em três anos, também para evitar algumas situações menos claras", garante Gouveia de Melo, observando que, depois deste caso, a Marinha tomou mais precauções - "acabaram as requisições à mão, sendo todas dactilografadas e sem rasuras e obrigatoriamente assinadas pelo comandante do navio e pelo oficial director da cantina" - e deixa uma vontade: "Vamos ser implacáveis com este tipo de situações. Não vamos seguramente ficar impávidos quando o caso chegar a julgamento."

Cielo e terra (duet with Dante Thomas)